terça-feira, 13 de junho de 2017

EMERGÊNCIAS E GESTÃO DO RISCO: RISCO A JUSANTE DE BARRAGENS - António Betâmio de Almeida

EMERGÊNCIAS E GESTÃO DO RISCO
RISCO A JUSANTE DE BARRAGENS


António Betâmio de Almeida


CAPÍTULO 7 - EMERGÊNCIAS E GESTÃO DO RISCO
7.1. RISCO A JUSANTE DE BARRAGENS


7.1.1. Introdução

As barragens construídas pelo Homem, e os volumes de água por elas retidas, constituem potenciais factores de risco no sentido de poderem vir a ser a origem de acidentes graves que ponham em perigo a segurança de pessoas e bens nos vales a jusante. A segurança das barragens, nomeadamente as condições em que as mesmas são exploradas, está, assim, intimamente associada à segurança nos vales onde estão localizadas.


Historicamente, os vales e as respectivas planícies férteis nas margens dos rios constituíram zonas de atracção para as populações se fixarem. Os benefícios desta ocupação têm como contrapartida os custos associados aos riscos naturais próprios dos vales. As cheias, não obstante os efeitos positivos que têm para a agricultura, constituíram sempre um grande perigo para os habitantes dos vales. Este perigo é fortemente minimizado sempre que o ritmo de ocorrência das cheias naturais é empiricamente apreendido e transmitido através das gerações. Este conhecimento é a base dos procedimentos intuitivos de protecção contra as cheias adoptados naturalmente pelas populações em risco.

Contudo, as cheias violentas, súbitas ou inesperadas, permanecem como sendo o evento mais temido, perigoso e catastrófico para os habitantes dos vales. Com barragens em exploração num vale, a cheia potencialmente mais perigosa e devastadora é a resultante de acidentes nas barragens. Salienta-se, no caso extremo, o esvaziamento de uma albufeira por efeito da ruptura, total ou parcial, da respectiva barragem. Assim, cada barragem introduz no vale a jusante um factor de incerteza relacionado com a possibilidade, mesmo que remota, de ser, em resultado de um acidente, a causa de cheias catastróficas.

Felizmente, os avanços da engenharia têm vindo a fazer diminuir, de modo muito significativo, a taxa expectável de rupturas nas grandes barragens que têm vindo a ser construídas mais recentemente.

Alguns acidentes paradigmáticos que ocorreram na Europa, na segunda metade do século XX, obrigaram a reflectir no risco nos vales a jusante e na prevenção contra os potenciais efeitos de rupturas de barragens. Citam-se, a título de exemplo, as mais importantes: 

- Barragem de Malpasset, em França, de betão (arco) com 61 m de altura, rompeu em 1959, provocando a cheia induzida 421 mortes ao longo dos 11 km de vale até ao Mediterrâneo.

- Barragem de Vega de Tera, em Espanha, de contrafortes com 34 m de altura, colapsou parcialmente, em 1959, provocando a morte de 144 pessoas no vale a jusante.

 - Barragem de Vaiont, em Itália, de betão (arco) com 265 m de altura, foi galgada, em 1963, pela água inicialmente armazenada na albufeira (150 × 106 m3), em resultado do deslizamento de cerca de 240 × 106 m3 de rocha de uma encosta, provocando a morte a cerca de 2 600 pessoas no vale a jusante.

Não obstante o menor grau de mediatização a que estes acontecimentos estavam sujeitos à época, a sociedade, em geral, e a comunidade técnico--científica associada à construção e exploração das barragens reagiram de forma decidida a este tipo de ameaça.

Regista-se, como muito relevante, as acções sistemáticas, a nível mundial, do ICOLD (International Committee on Large Dams) nos domínios da recolha de informação e tratamento estatístico, de análise de possíveis causas de acidentes e incidentes e de recomendações e critérios de projecto e exploração visando a melhoria da segurança das barragens e, de forma indirecta, dos vales a jusante. 

O risco induzido pelas barragens e a forma de o controlar nos vales a jusante podem ser objecto de dois tipos extremos e opostos de reacção:

- uma confiança extrema na segurança das barragens e na respectiva exploração, admitindo que todos os aspectos foram adequadamente considerados durante o projecto (ponto de vista do especialista), ou em resultado de uma fé absoluta no poder da ciência e da tecnologia (ponto de vista do crente na eficácia do progresso tecnológico);

 
- uma forte suspeita, que pode degenerar em aversão e terror, pelas consequências incertas e desconhecidas induzidas por uma ameaça tecnológica e pelas alterações nas condições ambientais naturais, impostas aos cidadãos que habitam o vale a jusante.

 A partir da década de 60, começaram a surgir regulamentos e procedimentos de segurança de barragens envolvendo, explicitamente, os efeitos nos vales a jusante das mesmas e a prevenção contra os potenciais efeitos de acidentes, incluindo sistemas de aviso prévio e planos de evacuação das populações a jusante. A eficácia destes sistemas foi reconhecida nos acidentes, entre outros, das barragens de Baldwin Hill (1963) e San Fernando (1971), nos EUA. Por seu turno, no acidente da barragem de Orós (1960), no Brasil, a inexistência deste tipo de medidas de protecção pode ter sido responsável por 50 mortos. No entanto, foi ainda possível com a ajuda das forças armadas, evacuar milhares de habitantes.
 

Desde a década de 70 até ao presente, a evolução na segurança dos vales tem sido sempre no sentido de melhorar os sistemas de protecção civil bem como os modos de participação e de informação pública, complementando, assim, as acções, cada vez mais elaboradas, de segurança estrutural e hidráulico-operacional nas barragens.

Os meios de informação e o tipo de sociedade actual, extremamente sensível à discussão dos aspectos de segurança ambiental, tornaram a segurança e os riscos tecnológicos um assunto de interesse público cuja discussão aberta passou a ser incontornável.

Entretanto, milhares de barragens foram sendo construídas, enquanto outras vão envelhecendo sujeitas a uma potencial deterioração de materiais e perda de capacidade de resistência estrutural ou a alterações hidrológicas que podem tornar inadequados os órgãos de segurança inicialmente construídos.

No entanto, vivem, em todo o Mundo, nos vales a jusante, milhões de pessoas, nomeadamente em zonas urbanas ou densamente ocupadas.

Segundo ICOLD, 1997, a maioria das vítimas mortais de todos os acidentes em barragens que rompem envolvem barragens com uma altura inferior a 30 m constituindo este tipo de barragem o de maior risco no futuro próximo (ICOLD, 1997, pg. 132).
 Nas sociedades democráticas e participativas contemporâneas, o poder da comunicação social e da opinião pública, a liberalização dos regimes económicos, incluindo a privatização da propriedade e exploração de grandes infra-estruturas de interesse público, e a responsabilização pelos danos resultantes de acidentes tecnológicos, são factores de pressão muito fortes que tornaram a segurança nos vales a jusante de barragens um domínio emergente de interesse público que é reconhecido pelos novos regulamentos de segurança que têm vindo a ser adoptados nos países desenvolvidos, incluindo o Regulamento de Segurança de Barragens (RSB) em vigor em Portugal (Decreto-Lei nº 11/90).

Nas décadas de 80 e 90, são propostos e desenvolvidos novos conceitos e metodologias integradas para a segurança nos vales a jusante, conjugando os conhecimentos de engenharia das barragens com novas tecnologias de apoio à decisão e à protecção civil, com metodologias de ciências sociais aplicadas, nomeadamente a sociologia e a psicologia social e, finalmente, com o ordenamento do território e a gestão da ocupação do vale tendo em conta os riscos de ocorrência de cheias. 
O principal conceito é o de sistema de segurança integrada baseado em três vectores fundamentais:

                  • Técnico-Operacional;


Monitorização-Vigilância;

Gestão do Risco-Emergência.


O componente mais recente, que complementa e consolida os tradicionais sistemas de segurança é um componente importante para a segurança dos vales a jusante de barragens. Ele introduz a consideração da resposta às situações de Emergência, no sentido de ocorrência de qualquer situação crítica ou acidente imprevisto que coloque em perigo a segurança da barragem e do vale. Esta resposta deverá ser planeada e enquadrada por procedimentos especiais. Obviamente, as situações de emergência nas barragens podem constituir uma séria ameaça à segurança dos vales a jusante.

O outro componente, a Gestão do Risco, é o conceito que tem sido adoptado para definir o enquadramento e a aplicação de metodologias de resposta aos problemas de segurança integrada da barragem e do vale envolvendo, a necessidade de avaliação e manutenção de níveis de risco, quer na fase de projecto, quer nas fases de construção e exploração, de mitigar danos e de promover a protecção nos vales, face à inevitabilidade de uma segurança não absoluta ou sujeita a incertezas.

No presente capítulo, apresentam-se conceitos e metodologias relacionados com a segurança e o risco de barragens e dos vales a jusante que, progressivamente, vão sendo objecto de atenção nos regulamentos e normas de segurança e no projecto e exploração de barragens. Incluem-se alguns procedimentos propostos para a aplicação do Regulamento de Segurança de Barragens de Portugal.

(…)



7.1.3. Segurança de barragens e vales

Um dos deveres básicos da Engenharia é o de evitar o mais possível a ocorrência de acidentes graves nas obras construídas, nomeadamente nas barragens. Decorre deste dever a aplicação das melhores práticas possíveis ou conhecidas no projecto, construção e exploração das barragens, incluindo a consideração do conceito de segurança e a necessidade da respectiva avaliação.
A segurança (da barragem) pode ser definida como a capacidade da barragem para satisfazer as exigências de comportamento necessárias para evitar incidentes a acidentes (RSB, artigo 3º).

Do ponto de vista lexical, a palavra segurança traduz o grau de firmeza ou de certeza na concretização da referida capacidade mas, também, o grau de confiança ou de tranquilidade de espírito relativamente ao comportamento da barragem.

Podemos, assim, considerar como adequado caracterizar a segurança da barragem a dois níveis distintos (Fig. 7.1):

- Nível Objectivo, de acordo com a quantificação tecnicamente possível do grau de certeza na capacidade de evitar incidentes e acidentes; 
- Nível Subjectivo, de acordo com a caracterização da percepção da confiança, individual e social, suscitada por uma determinada barragem ou conjunto de barragens e do relativo grau de incerteza na ocorrência de acidentes.

No que concerne o vale a jusante, de uma ou mais barragens, e os respectivos habitantes e bens materiais económicos ou ambientais, o conceito de segurança está associado à possibilidade de ocorrência de cheias, inesperadas, súbitas e muito intensas (por vezes designadas por macro-cheias), resultantes de eventuais incidentes e acidentes nas barragens a montante.


Neste contexto, a segurança no vale envolve dois escalões:


- Escalão Barragem, como sendo a origem potencial de cheias perigosas, em resultado de múltiplas causas possíveis;

- Escalão Vale, como sendo a zona de impacto das cheias resultantes dum eventual comportamento inadequado de uma ou mais barragens a montante.


Cada um dos escalões engloba os dois níveis atrás referidos: o nível objectivo e o nível subjectivo.

O nível objectivo da segurança da barragem consubstancia-se através das práticas e dos critérios adequados de projecto, construção e exploração e da capacidade de observação e vigilância (monitorização) do comportamento da barragem.

De acordo com o RSB (artigo 3º), a segurança da barragem compreende os aspectos estruturais, hidráulicos operacionais e ambientais:


      -   Segurança estrutural, corresponde à capacidade da barragem para satisfazer as exigências de comportamento estrutural perante as acções e outras influências, associadas à construção e exploração e a ocorrências excepcionais;

  -   Segurança hidráulica, corresponde à capacidade da barragem para satisfazer as exigências de comportamento hidráulico dos órgãos de segurança e exploração e dos sistemas de impermeabilização, de filtragem e de drenagem;

  -   Segurança operacional, corresponde à capacidade da barragem para satisfazer as exigências de comportamento relacionadas com a operação e funcionalidade dos equipamentos dos órgãos de segurança e exploração; 

      -  Segurança ambiental, corresponde à capacidade da barragem para satisfazer as exigências de comportamento relativas à limitação de incidências prejudiciais sobre o ambiente, designadamente sobre os meios populacionais e produtivos.

A segurança ambiental inclui, entre outros aspectos, a preocupação com as incidências sobre os meios populacionais e produtivos localizados nas áreas sob o efeito potencial da barragem (incluindo a albufeira), nomeadamente: 



 - no vale a montante, em particular, na fase de construção, a necessidade de deslocar habitantes e  meios de produção por efeito da inundação provocada pela criação da albufeira;

 
- no a jusante, em particular, na fase de projecto e de exploração, a necessidade de prever as consequências de um acidente, independentemente da probabilidade da sua ocorrência.



A definição dos níveis de segurança na barragem, a consideração da segurança no vale a jusante, relativamente aos efeitos de eventuais falhas na barragem, pode justificar a introdução de técnicas de análise de risco nos critérios de dimensionamento estrutural e hidráulico. O nível (objectivo) da segurança da barragem passa, assim, a depender do valor ou importância das consequências expectáveis de um possível acidente compatível com o referido nível de segurança.

A especificação de níveis de segurança nos vales a jusante, relativamente aos efeitos de acidentes em barragens, incluindo ocorrências catastróficas prováveis, implica, inevitavelmente, a adopção de medidas não estruturais de protecção baseadas, fundamentalmente, em zonamentos e cartas de risco, planos de emergência, sistemas de alerta e aviso, exercícios e um ordenamento consequente da ocupação do vale.
 
Na segurança de barragens e dos vales a jusante, o nível subjectivo é o mais complexo na medida em que abrange a percepção individual e a percepção dos grupos de pessoas abrangidas pelos potenciais efeitos de um acidente.


Este nível subjectivo é função de um conjunto de factores sociais e físicos e influenciará, de modo significativo, o processo de segurança tendo em conta a forma como afectará:

           - o diálogo e a informação pública;


- a resposta aos sistemas de aviso e aos planos de emergência;


- a opinião sobre as barragens e as tomadas de decisão sobre as mesmas, nomeadamente futuras obras de reforço ou reabilitação.
 
Para compreender melhor a razão dos conflitos sociais e dos problemas induzidos por este tipo de infra-estruturas, metodologias multidisciplinares emergentes precisam de ser desenvolvidas e aplicadas.

(…)

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